MOMENTO SALVADO - jorge peres - (português)

 


                                   MOMENTO SALVADO 



            “ Busque Amor novas artes, novo engenho
            Para matar-me, e novas esquivanças,
            Que não pode tirar-me as esperanças,
            Que mal me tirará o que não tenho.


            Olhai de que esperanças me mantenho!
            Vede que perigrosas seguranças!
            Que não temo contrastes nem mudanças,
            Andando em bravo mar, perdido o lenho.


            Mas, enquanto não pode haver desgosto
            Onde esperança falta, lá me esconde
             Amor um mal, que mata e não se vê,


            Que dias há que na alma me tem posto
            Um não sei quê, que nasce não sei onde,
            Vem não sei como e doi sem porquê. “


    O rapaz dos óculos olhava a folha A4 que estava na sua mesa compartilhada.
    Literatura … era a primeira disciplina da manhã …
    Com os seus 13 anos, recém cumpridos, era um rapaz “quase” normal …
    O “quase” tinha que ver com os seus hobbies … gostava de ficção científica … todo o tipo de leitura … gostava de escrever … poesia … entre outras coisas …
    Por isso olhava aquele trabalho de casa como algo muito interessante … ler o soneto do expoente da literatura portuguesa … Luís Vaz de Camões …
    O professor era um homem sério, mas muito atento … nunca elevava o tom da voz … nem tinha necessidade disso … nas suas aulas havia tranquilidade … atenção … respeito …
--- Leste o soneto XV como pedi ?! --- ao sentar-se na carteira da frente ficava na mira principal do professor … mas isso não lhe importava …
--- Sim, “stor” … li …
--- Gostaríamos de ouvir a tua interpretação … o que pensas que o poeta nos quis transmitir ?!
    O rapaz levantou-se.
--- Eu penso que Luís de Camões escreve para uma dama, por quem estava apaixonado, e explica-lhe que sabe que o seu amor é impossível, mas que não o pode controlar …
    Ao voltar a sentar-se fez-se silêncio na sala …
    O professor olhava-o muito sério … esperou quase um minuto antes de responder …
--- Fizeste o trabalho de casa … é notório que leste o soneto … em todo o caso a tua interpretação não está correcta … o que o poeta tenta aqui é uma redefinição do conceito do amor … não se dirije a ninguém em particular … está o menino um pouco fora do espirito que tinha Camões.
--- E como sabe o “stor” qual era a intenção do autor ao escrever o soneto ?! Tomou o pequeno almoço com ele ?! Luis de Camões morreu … Deixou alguma coisa escrita sobre isto ?!
    O professor aproximou-se lentamente … não parecia zangado …
    Há estudos, feitos por gente muito conhecedora de tudo o que tem que ver com Camões … eles chegaram à conclusão do motivo de cada um dos seus escritos …
--- Isso é muito relativo … eu escrevo também poesia … eu trago-lhe um poema meu, o “stor” interpreta e, eu dúvido que acerte na minha intenção …
--- Você escreve poesia ?!!?
--- Sim, senhor …
--- Pois aceito o desafio … quando voltaremos a ter aula ?!
--- Quarta-feira … às 10.30h …
--- Ok. Depois de amanhã vai trazer-me um dos seus poemas … começaremos a aula pela sua leitura e interpretação …
--- Assim farei, “stor”.
    O resto do tempo passou normal sem nada mais de destaque …
    O rapaz dos óculos regressou a casa pensando que poema seu devia escolher … tinha muitos … escrevia, em média, um por dia …


                                    --------//--------


    Era com alguma emoção que esperava no corredor do liceu, a chegada do professor de Literatura …
    Já se tinha ouvido o toque de entrada há uns dois minutos …
    Os seus companheiros olhavam o relógio da parede … aguardavam o toque de feriado e poder assim ter livres os próximos cinquenta minutos … todos … menos o rapaz dos óculos …
    Ele apertava de encontro ao peito uma pasta … aí, entre outras coisas, transportava o seu poema …
    O professor nunca faltava … vivia do outro lado da avenida … e, ainda por cima, adorava dar aulas …
    O seu aparecimento ao fundo do corredor causou entristecimento nos rapazes …
--- Pensavam que já não vinha ?!!?
    Ninguém respondeu … ninguém se deu conta do sorriso do rapaz dos óculos …
    Já dentro da sala de aula, sentado, esperou que o profe falasse … possivelmente nem se lembrava já dele …
--- Tem aí o seu poema ?!
    Quase deu um salto … abriu a pasta e tirou uma folha … na tarde anterior tinha escrito, usando a velha máquina de escrever do seu pai, um dos seus poemas …
--- Aqui está, “stor” … --- esticou o braço mas o professor fez-lhe sinal para que se levantasse …
--- Venha até aqui, junto ao quadro … quero que o leia para todos os seus companheiros … quanto a vocês estejam atentos porque depois pedirei a algum para fazer uma interpretação.
    Não o esperava … mas obedeceu com muito agrado …
--- Chama-se … “Sonhar” …


            “ Sonhar é forma de viver.
            Sonhar. Maneira de expressar
            Que temos logo ao nascer
            Mal podendo ainda falar.


            Sonhar é felicidade.
            Sonhar é o adormecer
            Da vida, e, na verdade,
            Sonhar é fonte de prazer.


            Quem é que não pode sonhar ?
            Quem é que sonhar não sabe ?
            É como respirar !


            E que sonha a gente ?
            Sonha o que a vida sabe.
            Desvenda o que a vida mente. “


    O silêncio dos seus companheiros contrastava um pouco com o olhar de admiração do professor …
--- Muito bem … já ouviram o poema … agora, quem quer lançar uma interpretação ?!
    Um deles levantou a mão.
--- Eu penso que ele tentou definir o significado da palavra “sonhar”.
--- E eu estou de acordo com o seu companheiro … como autor diga-me … qual foi a sua intenção ?
--- O meu soneto é um pouco mais profundo do que a simples definição de “sonhar” … tento fazer uma comparação entre a realidade e a mentira … deixo cair que, possivelmente, o sonho nos permite distinguir a verdade que a vida nos oculta …
--- Muito bem … estamos informados … a partir de hoje quero que me traga um poema novo a todas classes … faremos sempre como hoje … você lê, eles interpretam e depois seguimos a aula …
    O rapaz dos óculos deu meia volta para voltar ao seu sítio …
--- Espere! Eu fico com isso --- apuntava a folha de papel com o seu poema …
    Ao terminar a classe foi dos últimos a sair … esperava-o o professor …
--- Desde quando escreves, rapaz ?!
--- Desde os meus dez anos … mais ou menos …
--- Pensaste alguma vez em publicar um livro de poemas ?!
--- É o que estou escrevendo com a Olivetti do meu pai … depois agrafo as folhas … parece um livro …
O professor sorriu com a ingeniudade …
--- E já tem nome, esse “livro” ?
--- Sim … “PAIXÕES E CONTRADIÇÕES DA VIDA DE UM JOVEM” …
--- Continua … gosto do teu estilo …
    Desde esse dia a normalidade das aulas passava por ele …
    O facto de que o professor sempre ficasse com o poema obrigou o rapaz a escrever sempre com cópia … assim sempre ficava com um exemplar …


                                    --------//--------


    O ambiente humano estava um pouco alterado … era o último dia de aulas antes das férias grandes e as aulas eram quase uma rápida despedida e um balanço do ano lectivo …
--- Rapazes … para fechar o ano, e antes de entrarmos de ferias, quero convidar-vos a passar pela biblioteca do liceu … há uma exposição obrigatória … repito … a vossa visita é obrigatória … agora mesmo … vamos … eu acompanho-vos …
    Aproximou-se do rapaz dos óculos …
--- Vem comigo … tenho algo que mostrar-te …
    A biblioteca estava no corredor paralelo àquele donde estavam … levaram poucos minutos a chegar …
    Todas as luzes estavam acesas … as mesas de estudo tinham sido afastadas contra a parede livrando um espaço livre onde estavam vários expositores que apresentavam algo …
    Foi-se aproximando … pouco a pouco … parecia uma exposição de poemas …
    Chegou-se a um dos expositores … poema “SONHAR” …
    O rapaz ficou surpreendido … olhou ao lado … um enorme placar dava nome ao evento … “PAIXÕES E CONTRADIÇÕES DA VIDA DE UM JOVEM – por – JORGE PERES …
    Invadiu-o a emoção … eram os seus poemas … uma lágrima rebelde baixou pela face …
--- Isto fi-lo para ti … aqui tens o teu primeiro livro …
--- Muito … obrigado …
--- Mas tem um preço …
    Jorge, o rapaz dos óculos, olhava-o sem comprender …
--- Tens que prometer-me que não deixarás de escrever …
--- Prometido … --_ riram-se os dois … muitíssimo obrigado, professor António Salvado.


                                Fim ( quase )


    O passado 05 de março de 2023, faleceu, aos 87 anos, o grande professor ANTÓNIO SALVADO, um dos mais grandes expoentes poéticos da península ibérica.
    É autor de uma vasta obra, perto de 80 livros entre poesias, antologias e traduções.
    Era Comendador Militar de Santiago de Espada, tinha a Medalha de Mérito Cultural, era doctor honoris causa pela Universidade da Beira Interior e pela Universidade de Salamanca e foi, durante vários anos, Director-Conservador do Museu Francisco Tavares Proença Júnior.
    Há muitos anos atrás, finais dos 70, ANTÓNIO SALVADO foi professor de literatura no Liceu Nuno Álvares de Castelo Branco, cidade que o viu nascer … a ele … e a mim …
    Numa das suas aulas estava um rapaz com óculos … rebelde … eu mesmo …
    Este relato curto é a minha homenagem à figura … ao poeta … ao professor … à pessoa que agora nos deixou fisicamente, mas que sempre continuará entre nós … aqui conto o que realmente se passou e, como ele se transformou no responsável porque hoje … 50 anos depois … eu continue a escrever …
    Termino com a primeira frase que se me veio à cabeça quando me chegou a notícia do seu falecimento …
--- Obrigado, professor ANTÓNIO SALVADO … continuo a cumprir o prometido.


                        Fim ( agora sim)





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SOMBRAS DIFUSAS - jorge peres (em português) (sombrasdifusasemportugues.blogspot.com)




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