MOMENTO SALVADO
“ Busque Amor novas artes, novo engenho
Para
matar-me, e novas esquivanças,
Que
não pode tirar-me as esperanças,
Que
mal me tirará o que não tenho.
Olhai
de que esperanças me mantenho!
Vede
que perigrosas seguranças!
Que
não temo contrastes nem mudanças,
Andando
em bravo mar, perdido o lenho.
Mas,
enquanto não pode haver desgosto
Onde
esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não
se vê,
Que
dias há que na alma me tem posto
Um
não sei quê, que nasce não
sei onde,
Vem
não sei como e doi sem porquê. “
O
rapaz dos óculos olhava a folha A4 que estava na sua mesa
compartilhada.
Literatura
… era a primeira disciplina da manhã …
Com
os seus 13 anos, recém cumpridos, era um rapaz “quase” normal …
O
“quase” tinha que ver com os seus hobbies … gostava de ficção
científica … todo o tipo de leitura … gostava de escrever …
poesia … entre outras coisas …
Por
isso olhava aquele trabalho de casa como algo muito interessante …
ler o soneto do expoente da literatura portuguesa … Luís
Vaz de Camões …
O
professor era um homem sério, mas muito atento … nunca elevava o
tom da voz … nem tinha necessidade disso … nas suas aulas havia
tranquilidade … atenção … respeito …
---
Leste o soneto XV como pedi ?! --- ao sentar-se na carteira da frente
ficava na mira principal do professor … mas isso não lhe importava
…
---
Sim, “stor” … li …
---
Gostaríamos de ouvir a tua interpretação … o que pensas que o
poeta nos quis transmitir ?!
O
rapaz levantou-se.
---
Eu penso que Luís de Camões escreve para uma dama, por quem estava
apaixonado, e explica-lhe que sabe que o seu amor é impossível, mas
que não o pode controlar …
Ao
voltar a sentar-se fez-se silêncio na sala …
O
professor olhava-o muito sério … esperou quase um minuto antes de
responder …
---
Fizeste o trabalho de casa … é notório que leste o soneto … em
todo o caso a tua interpretação não está correcta … o que o
poeta tenta aqui é uma redefinição do conceito do amor … não se
dirije a ninguém em particular … está o menino um pouco fora do
espirito que tinha Camões.
---
E como sabe o “stor” qual era a intenção do autor ao escrever o
soneto ?! Tomou o pequeno almoço com ele ?! Luis de Camões morreu …
Deixou alguma coisa escrita sobre isto ?!
O
professor aproximou-se lentamente … não parecia zangado …
Há
estudos, feitos por gente muito conhecedora de tudo o que tem que ver
com Camões … eles chegaram à conclusão do motivo de cada um dos
seus escritos …
---
Isso é muito relativo … eu escrevo também poesia … eu trago-lhe
um poema meu, o “stor” interpreta e, eu dúvido que acerte na
minha intenção …
---
Você escreve poesia ?!!?
---
Sim, senhor …
---
Pois aceito o desafio … quando voltaremos a ter aula ?!
---
Quarta-feira … às 10.30h …
---
Ok. Depois de amanhã vai trazer-me um dos seus poemas …
começaremos a aula pela sua leitura e interpretação …
---
Assim farei, “stor”.
O
resto do tempo passou normal sem nada mais de destaque …
O
rapaz dos óculos regressou a casa pensando que poema seu devia
escolher … tinha muitos … escrevia, em média, um por dia …
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Era
com alguma emoção que esperava no corredor do liceu, a chegada do
professor de Literatura …
Já
se tinha ouvido o toque de entrada há uns dois minutos …
Os
seus companheiros olhavam o relógio
da parede … aguardavam o toque de feriado
e poder assim ter livres os próximos cinquenta minutos … todos …
menos o rapaz
dos óculos …
Ele
apertava de encontro ao peito uma pasta … aí, entre outras coisas,
transportava o seu poema …
O professor nunca faltava … vivia do outro lado da avenida … e,
ainda por cima, adorava dar aulas …
O
seu aparecimento ao fundo do corredor causou entristecimento nos
rapazes …
---
Pensavam que já não vinha ?!!?
Ninguém
respondeu … ninguém se deu conta do sorriso do rapaz dos óculos …
Já
dentro da sala de aula, sentado, esperou que o profe falasse …
possivelmente nem se lembrava já dele …
---
Tem aí o seu poema ?!
Quase
deu um salto … abriu a pasta e tirou uma folha … na tarde
anterior tinha escrito, usando a velha máquina de escrever do seu
pai, um dos seus poemas …
---
Aqui está, “stor” … --- esticou o braço mas o professor
fez-lhe sinal para que se levantasse …
---
Venha até aqui, junto ao quadro … quero que o leia para todos os
seus companheiros … quanto a vocês estejam atentos porque depois
pedirei a algum para fazer uma interpretação.
Não
o esperava … mas obedeceu com muito agrado …
---
Chama-se … “Sonhar” …
“ Sonhar é forma de viver.
Sonhar. Maneira de expressar
Que
temos logo ao nascer
Mal
podendo ainda falar.
Sonhar
é felicidade.
Sonhar
é o adormecer
Da
vida, e, na verdade,
Sonhar
é fonte de prazer.
Quem
é que não pode sonhar ?
Quem
é que sonhar não sabe ?
É
como respirar !
E
que sonha a gente ?
Sonha
o que a vida sabe.
Desvenda
o que a vida mente. “
O
silêncio dos seus companheiros contrastava um pouco com o olhar de
admiração do professor …
---
Muito bem … já ouviram o poema … agora, quem quer lançar uma
interpretação ?!
Um
deles levantou a mão.
---
Eu penso que ele tentou definir o significado da palavra “sonhar”.
---
E eu estou de acordo com o seu companheiro … como autor diga-me …
qual foi a sua intenção ?
---
O meu soneto é um pouco mais profundo do que a simples definição
de “sonhar” … tento fazer uma comparação
entre a realidade e a mentira … deixo cair que, possivelmente, o
sonho nos permite distinguir a verdade que a vida nos oculta …
---
Muito bem … estamos informados … a partir de hoje quero que me
traga um poema novo a todas classes … faremos sempre como hoje …
você lê, eles interpretam e depois seguimos a aula …
O
rapaz dos óculos deu meia volta para voltar ao seu sítio …
---
Espere! Eu fico com isso --- apuntava a folha de papel com o seu
poema …
Ao
terminar a classe foi dos últimos a sair … esperava-o o professor
…
---
Desde quando escreves, rapaz ?!
---
Desde os meus dez anos … mais ou menos …
---
Pensaste alguma vez em publicar um livro de poemas ?!
---
É o que estou escrevendo com a Olivetti do meu pai … depois agrafo
as folhas … parece um livro …
O
professor sorriu com a ingeniudade …
---
E já tem nome, esse “livro” ?
---
Sim … “PAIXÕES E CONTRADIÇÕES DA VIDA DE UM JOVEM” …
---
Continua … gosto do teu estilo …
Desde
esse dia a normalidade das aulas passava por ele …
O
facto de que o professor sempre ficasse com o poema obrigou o rapaz a
escrever sempre com cópia … assim sempre ficava com um exemplar …
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O
ambiente humano estava um pouco alterado … era o último dia de
aulas antes das férias grandes e as aulas eram quase uma rápida
despedida e um balanço do ano lectivo …
---
Rapazes … para fechar o ano, e antes de entrarmos de ferias, quero
convidar-vos a passar pela biblioteca do liceu … há uma exposição
obrigatória … repito … a vossa visita é obrigatória … agora
mesmo … vamos … eu acompanho-vos …
Aproximou-se
do rapaz dos óculos …
---
Vem comigo … tenho algo que mostrar-te …
A biblioteca estava no corredor paralelo àquele donde estavam …
levaram poucos minutos a chegar …
Todas
as luzes estavam acesas … as mesas de estudo tinham sido afastadas
contra a parede livrando um espaço livre onde estavam vários
expositores que apresentavam algo …
Foi-se
aproximando … pouco a pouco … parecia uma exposição
de poemas …
Chegou-se
a um dos expositores … poema “SONHAR” …
O
rapaz ficou surpreendido … olhou ao lado … um enorme placar dava
nome ao evento … “PAIXÕES E CONTRADIÇÕES DA VIDA DE UM JOVEM –
por – JORGE PERES …
Invadiu-o
a emoção … eram os seus poemas …
uma lágrima rebelde baixou pela face …
---
Isto fi-lo para ti … aqui tens o teu primeiro livro …
---
Muito … obrigado …
---
Mas tem um preço …
Jorge,
o rapaz dos óculos, olhava-o sem comprender …
---
Tens que prometer-me que não
deixarás de escrever …
---
Prometido … --_ riram-se os dois … muitíssimo obrigado,
professor António Salvado.
Fim
( quase )
O
passado 05 de março de 2023, faleceu, aos 87 anos, o grande
professor ANTÓNIO SALVADO, um dos mais grandes expoentes poéticos
da península ibérica.
É
autor de uma vasta obra, perto de 80 livros entre poesias, antologias
e traduções.
Era
Comendador Militar de Santiago de Espada, tinha a Medalha de Mérito
Cultural, era doctor honoris causa pela Universidade da Beira
Interior e pela Universidade de Salamanca e foi, durante vários
anos, Director-Conservador do Museu Francisco Tavares Proença
Júnior.
Há
muitos anos atrás, finais dos 70, ANTÓNIO SALVADO foi professor de
literatura no Liceu Nuno Álvares de Castelo Branco, cidade que o viu
nascer … a ele … e a mim …
Numa
das suas aulas estava um rapaz com óculos … rebelde … eu mesmo …
Este
relato curto é a minha homenagem à figura … ao poeta … ao
professor … à pessoa que agora nos deixou fisicamente, mas que
sempre continuará entre nós … aqui conto o que realmente se
passou e, como ele se transformou no responsável porque hoje … 50
anos depois … eu continue a escrever …
Termino
com a primeira frase que se me veio à cabeça quando me chegou a
notícia do seu falecimento …
---
Obrigado, professor ANTÓNIO SALVADO … continuo a cumprir o
prometido.
Fim
( agora sim)
.
. podes ler outras historias em :
. SOMBRAS DIFUSAS - jorge peres (em português) (sombrasdifusasemportugues.blogspot.com)
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